sexta-feira, 22 de agosto de 2014

O corpo na poética de Lygia Clarck e a participação do espectador

Texto de Dirce Helena Benevides de Carvalho

"No Brasil, o trabalho de Lygia Clark é de extrema relevância em decorrência das transformações que opera nos três elementos da comunicação artística: o artista, a obra e o espectador. A trajetória de Lygia Clark é a própria trajetória de vida e arte que se mesclam, se misturam, se desdobram, se tocam, se confundem para resgatar o significado primeiro de “ser e estar” no mundo. Esse terreno fronteiriço onde se instaura a artista a partir da criação dos Bichos, 1959, dificulta a tratativa de sua produção, pois ao abandonar o objeto de arte faz uma expansão em sua obra contaminando outras áreas do conhecimento , trabalhando em um terreno movediço, onde qualquer tentativa em categorizá-la será sempre um risco. Ressalta-se, portanto, que o exercício reflexivo do presente artigo propõe-se a levantar alguns deslocamentos realizados pela artista na passagem do objeto permanente para o corpo sem a pretensão de subscrever suas manifestações em algum campo específico, seja no âmbito das artes visuais, da performance, das artes cênicas, da arte terapia, ou mesmo da antiarte.O que se pretende é sinalizar deslocamentos advindos da passagem do objeto para a arte efêmera onde a artista elege o corpo como o topos de sua obra. Para explicitar tal passagem , faz-se necessário discorrer sobre as transformações que ocorrem na trajetória de Lygia Clark. Para tanto, foram escolhidos os Bichos, obra criada pela artista no momento em que integra o Grupo Neoconcreto, 1959-1961, e Caminhando, 1964. A própria artista não permite que sua obra seja categorizada. Extremamente lúcida, passa por transformações onde todas as fases se entrelaçam, advindas de múltiplos processos de transformação, de germinação de idéias, de buscar no mundo e em si mesma, no aqui e no agora as sensações esquecidas. A lucidez é experimentada em cada uma delas e sempre acompanhada de dolorosas crises, quando experimenta os seus limites, para no momento seguinte emergir em novas percepções. São vivências profundas que a artista não deixa escapar trazendo-as para a sua arte. Todas as fases de seu trabalho resultam de longo processo de maturação, muitas vezes inconsciente, vindas quase sempre em imagens oníricas “no interior que é exterior, uma janela e eu. Através desta janela eu vejo passar lá fora o que é para mim, o que está dentro. Deste sonho nasceu o Bicho que denominei ‘dentro-fora’” (CLARK, 1980, p. 23). Lygia Clark durante toda a sua trajetória tem consciência das inquietações e perturbações causadas pelos avanços tecnológicos e, na sua ousadia luta para recuperar esse homem fragmentado na tentativa de devolver-lhe o equilíbrio necessário para a sua sobrevivência.Ao abandonar o objeto de arte, coisa do passado dada ao espectador para decifrá-lo, a artista elege o corpo como o lugar privilegiado para suas proposições. Sobre a necessidade o corpo, Lygia em correspondência enviada a Hélio Oiticia, declara “Em tudo que faço há realmente necessidade do corpo humano que se expressa, ou para revelá-lo como se fosse uma experiência primeira” (CLARK,OITICICA, 1964-74, p. 62).
À guisa de Introdução, é oportuno enfatizar que pretende-se em pesquisas posteriores buscar conexões com o ‘corpo’ na poética de Lygia Clark e suas possíveis reverberações e/ou desdobramentos no corpo
performativo das artes cênicas. No decorrer de sua trajetória Lygia Clark luta incessantemente para eliminar o objeto de arte que considera coisa do passado, coisa dada ao espectador para decifrá-lo passando
a ser propositora de situações elegendo o corpo como lugar para fundir-se ao coletivo. A artista subverte a própria arte onde o corpo do espectador passa a ser o suporte de suas proposições, o que leva alguns historiadores a denominarem essas manifestações da artista de “antiarte ou arte-terapia”.
É, portanto, um trabalho fronteiriço e apresenta-se como campo aberto onde permanecerá sempre o indizível suscitando novas investigações."

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