segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Micheline Torres

Texto de: http://andreacarvalhostark.blogspot.com.br/2009/09/micheline-torres-alem-da-carne.html

Micheline Torres nasceu no ano de 1974, em uma cidade do interior da Paraíba chamada Sertãozinho, mas foi criada no subúrbio carioca do Méier. Estudou Filosofia e Artes Cênicas na universidade mas formou-se em Balé e em Dança Contemporânea. Mora hoje em Copacabana mas raramente a vemos ali na orla da praia mais famosa da cidade do Rio de Janeiro.

Micheline trabalha como bailarina de dança moderna no Brasil e no exterior. Copacabana só a vê por alguns meses. Já esteve em Portugal, França, Inglaterra, Canadá, Suiça, Alemanha. 

É meu trabalho. É o que coloco no mundo. É (também) como procuro sobreviver economicamente vivendo no Brasil em 2007. E é quase impossível, mas acontece.

Em 2008 vai passar três meses trabalhando em Paris. Foi uma das oito artistas do mundo a ser contemplada com uma bolsa pelo Centre International des Récollets.Seu trabalho se desenvolve através de pesquisas sobre dança, performance e artes plásticas. Sua carreira contraria a tão difundida idéia de que não é possível viver de dança. 


Ser performer no Brasil, ou trabalhar com dança contemporânea, artes plásticas, intervenção urbana, ou crítica de arte, é ser, segundo a expressão de Ricardo Basbaum "artista e etc". É construir trabalhos colaborativos, é atuar em várias esferas do fazer artístico, é ser curioso e, sobretudo, MUITO INSISTENTE! Ser "artista e etc" no Brasil é pensar política cultural. Também. E meter a mão na massa disforme de sua prática artística, seja qual for. Acredito nesses princípios como ações pra mim e pra nós, coisas que nos atravessam e seguem adiante.

Depois de 12 anos atuando na companhia de dança de Lia Rodrigues, Micheline Torres parte para seus próprios vôos. Iniciou, nesse ano de 2007, sua carreira como artista independente. O primeiro trabalho: a performance Carne.



E o frango sobre a mesa, porque é preciso se alimentar em vários sentidos. Meti a mão nele, me enfiei toda. E já estava saindo da Lia Rodrigues Companhia de Danças, depois de 12 anos de intensas colaborações, uma saída há muito tempo planejada e negociada e podia, enfim, me deter mais em meus projetos, porque é preciso se alimentar em vários lugares. Entrei no frango, na carne, e comecei a escorregar entre nossa materialidade, sexualidade, as trocas entre o que está dentro e o que está fora, as imagens que a carne provoca, a manipulação de meu corpo e de outro corpo, símbolos e rituais corporais. E daí saiu cuspe, corte, carne apertada, baba, garrote de exame de sangue, pasta e escova de dente, cirurgia facial, falta de peito, fio dental e mais o que cada um quiser ver no trabalho. Carne foi selecionado pelo Rumos Dança do Itaú Cultural de 2006, dessa vez como vídeo-dança. Virou uma performance que apresentei no Jardim da Delícias, Museu da República-RJ, Galeria Vermelho-SP, SPA das Artes-Recife e Multiplicidades-Vitória. Carne nasceu de uma proposta em um curso na Escola de Artes Visuais do Parque Lage: corpo presente/corpo ausente. Então, no início era o corpo. Parti da idéia de presença e ausência como vida e morte, e cheguei a corpo vivo, porém desanimado e corpo morto, porém animado. Cheguei ao frango. Era mais uma questão de me colocar diante de outro corpo e me perguntar: quem anima quem? Quem manipula quem? Quem entra dentro de quem? Sempre tive ojeriza a frango, desde que vi minha mãe limpando um na cozinha e tive a real noção de como ele era antes de chegar cheiroso à mesa...resolvi que tinha visto demais, que não mais o comeria. E foi ele quem apareceu enquanto eu caminhava no supermercado e pensava no corpo presente/corpo ausente, em morte e vida. Comprei o frango e lá estava eu e ele, na mesa de casa, frente a frente. Como entrar? 

Micheline estudou com os profissionais mais importantes da área de dança no Brasil e na Europa: Ruth Amarante e Bernd Marszan, Wuppertal Pina Bausch; Juliana Carneiro da Cunha, Théatrè du Soleil; Henriette Horn, Folkwang Hochschule Essen; Rui Horta, Portugal; Nienke Reehorst, Wim Vandekeybus; Helena Katz , PUC-SP; Massoud Sadpour, Workcenter of Jerry Grotowsky; Ed Kortland, Wuppertal Pina Bausch; Gary Stevens, Inglaterra; Alejandro Ahmed, Brasil; Cristophe Wavelet, França; Lia Rodrigues, Brasil.

Não, não acredito, como você perguntou, que um artista brasileiro tem que necessariamente ir para o exterior para "acontecer". Acredito no território aonde vivo e acredito no trânsito, nas trocas, nas parcerias. E sei que é mais provável que eu vá para Paris, com uma bolsa de estudos, do que eu vá para La Paz, na Bolívia, conhecer de perto o trabalho da Narda Alvarado, ou que eu vá outra vez para o Tocantins ou para Lima no Peru ou para Juazeiro do Norte. Mas eu desejo ter trabalho e dinheiro para ir pra África e pro México e pra Israel e pra Sertãozinho, cidade no interior da Paraíba, de onde eu vim. E ir não "levando meu trabalho e conhecimento",mas ir na mão dupla, no trânsito e na troca. Sobre território, trânsito e troca, ler Milton Santos, geógrafo brasileiro.

Em sua trajetória, mesmo sem ainda ter assumido uma carreira independente, Micheline apresentou trabalhos solos em festivais, como o consagrado Panorama RioArte de Dança. Em 2004, sua performance solo Erosão e Conservação do Solo foi selecionada pelo Rumos Dança do Itaú Cultural de São Paulo.

As idéias de Milton Santos me foram motor para um solo chamado "Erosão e Conservação do Solo". "Roubar" idéias de outros territórios, de outras linguagens, é minha prática comum. Roubo, furto ou plágio, creative commons, autoria compartilhada, atravessar e se deixar atravessar pelos outros, a estética do plágio de Tom Zé. Mas tenho família, pai, mãe, mestres, irmãos e primos distantes e aprecio minha rede de referências e que se propague muito além de mim, pra onde nem imagino. Nessa rede, disseram Péricles Cavalcanti e Arnaldo Antunes: "Antes de mim vieram os velhos/Os jovens vieram depois de mim/E estamos todos aqui/No meio do caminho dessa vida/Vinda antes de nós/E estamos todos a sós"

Escreveu na revista de arte O Ralador e performou com Tunga em alguns dos recentes trabalhos do consagrado artista plástico: Teresa, no Centro Cultural de São Paulo e em Laminadas Almas, no Jardim Botânico do Rio de Janeiro.

É o que esse grupo de dança contemporânea também se pergunta: como atravessar e avançar fazendo dança contemporânea no Brasil? Como pensar não em prêmios, mas em estruturas fortes que atravessem os governos e a nossa geração? Como garantir programas de fomento à criação, circulação, pesquisa e formação de público?

Aqui no Rio de Janeiro, alguns membros da classe de dança contemporânea têm se reunido para discutir políticas culturais e soluções para o programa cultural do governo, em esfera estadual e federal. São muitos encontros, muitas vezes difíceis, cartas pra redigir, escolhas a tomar. Assinando uma carta, me defini com "artista independente". Acho amplo, mas me sinto bem tendo espaço pra me mover ali dentro. Menos dentro da definição "artista independente" e mais dentro da independência e da liberdade que eu senti quando olhei pro frango sobre a mesa e me perguntei: como atravessá-lo?

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