No Brasil centenas de artistas interferem no espaço urbano em várias cidades de diversos estados brasileiros, individualmente ou em coletivos. A diversidade dessas maneiras de fazer demonstra uma multiplicidade de modos de ser sensível a vários aspectos da realidade e do imaginário, do espaço e do tempo, do inter e do transdisciplinar, do local e do global, do político e ético e do estético e poético. Ao interferir no espaço urbano alguns artistas aproximam-se das manifestações coletivas, dos manifestos políticos, de performances poéticas, das comunidades, enfim, diversificam os procedimentos artísticos. A multiplicidade dessas maneiras de fazer provocou uma indefinição no termo a ser utilizado para designar essa sucessão de formas, esta metamorfose. Torna-se um trabalho excludente, neste momento, criar fronteiras com termos descritivos. Há que se perceber, porém, a multiplicidade do espaço imanente.
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Fogo Cruzado, interferência urbana, Rio. fotos: Wilton Montenegro, 2002
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Um exemplo de interferência no espaço urbano é Fogo Cruzado (2002), um trabalho do artista Ronald Duarte em referência ao ‘fogo cruzado’ que acontece entre facções criminosas em Santa Teresa, no Rio de Janeiro. Uma ação artística de rua realizada às 3 horas da madrugada por 26 artistas, um conjunto de singularidades capaz de desenvolvimento autônomo onde cada indivíduo teve o seu valor intrínseco, sua potência.
Antes da realização, o artista conversou com cada um dos artistas participantes, explicou que fariam uma ação em diálogo direto com o espaço da cidade. Todos os artistas seriam responsáveis por uma fração da ação. Esta conjunção formaria um novo poder, o poder da multidão, e este poder se elevaria tornando-se ainda mais forte. Cada artista foi tão importante quanto outro, sem hierarquia. A intenção seria a insurreição, poderes conscientes para transformar algo.
Este trabalho contém uma idéia que dá nome à obra e perpassa todo o trabalho, um problema político-social da cidade. A intenção de Duarte foi criar uma transversalidade na cidade, um diálogo com o que agoniza. O artista evidenciou aquilo que estava visível para ele. No terreno estético, Duarte reflete sobre a política, sobre as relações entre cidadãos. Para ele, existem outros espaços, outras lógicas, outros poderes que coexistem na cidade. “É no terreno estético que prossegue uma batalha ontem centrada nas promessas da emancipação e nas ilusões e desilusões da História”.[2] Ronald Duarte faz parte dessa batalha.
O espectador pôde assistir a ação coletiva dos artistas que inseriram estopa nos interstícios dos trilhos dos bondes, a colocação de material inflamável e o ateamento simultâneo de fogo em mil e quinhentos metros delimitados para a ação. Isso ocasionou diversas reações: admiração, repulsa, constrangimento, protestos, intervenção policial e choque. Outros simplesmente pularam a fogueira. A maioria parecia sentir que algo de extraordinário estava acontecendo naquele local onde diariamente é apenas o espaço reservado ao fluxo de veículos. O público interagiu, ultrapassou o limite entre o espectador e o ator. Como teria sido a experiência estética desses espectadores?
O tempo da ação foi o tempo da duração, a afirmação do presente, do aqui e agora, do instante intenso. Há unidade e intensidade no tempo de Fogo cruzado. A ação aconteceu sem ensaio, sem um roteiro com início, meio e fim, sem cortes programados, apenas como um instante após o outro:
“É uma explosão, uma geringonça que monto para explodir” (...) “a explosão seria estar mais próximo daquilo que foi imaginado”.
Ronald afirma que sua idéia precisa estar com toda a sua potência para que a ‘explosão’ aconteça. A possível perda de controle dos fatores envolvidos e o ‘aqui e agora’ tornam-se características de sua obra. Intrínseca ao trabalho, a possibilidade de desmedida foi pensada pelo autor que procurou controlá-la.
É também no ‘aqui e agora’ que podemos ver a interação de três elementos que formam um só corpo: o tempo, o espaço e a ação. Fogo Cruzado forma um cronotopo e uma interseção entre cidade real e o conceito captado pelo artista.
((retirado de: http://www.ronalduarte.com/index.php/joomla-license)
"No momento, em que o fogo é aceso, a polícia fecha a delegacia. Os
policiais não sabem o que fazer. Começam a perguntar ao público: ‘Quem
é Ronald Duarte?’. Eu havia espalhado entre o público que caso alguém
perguntasse quem era Ronald Duarte, que dissessem que era uma pessoa
vestida com uma camisa estampada com os dizeres: ‘Fogo cruzado’. Havia
26 pessoas vestidas assim. Então, Ronald Duarte poderia ser qualquer um
deles."
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