* Texto escrito para a primeira edição da Revista Eletrônica do CEIA, 2009. Endereço eletrônico: http://www.ceia.art.br/revista/.
Autor: Fernando Cesar Ribeiro
A performance art surge como meio de exploração artística entre as décadas de 1960 e 70. Tendo como fio condutor a ação do artista num tempo presente e diante de um público que completa a sua “obra de arte”, atravessou as décadas e hoje torna-se um dos meios artísticos de maior ascensão, no mundo e também no Brasil.
Em praticamente quatro décadas, a performance mostrou-se um meio de extrema abertura à experimentação, podendo-se considerar que cada trabalho , e cada artista a desenvolvê-lo, propõe sua própria estrutura, dita seus próprios limites, torna-o único dentro do seu sentido próprio.
Apesar da individualização e da diferença dos mais diversos trabalhos, todos são reconhecidos pela da terminologia performance art, tidos como comuns entre si. Esse aspecto, provavelmente herdado do ser humano, permite que as mais diversas áreas do conhecimento possam se debruçar a estudar tal prática. Assim, a produção teórica da Sociologia, da História, da Semiótica, da Psicologia encontram um vasto campo de reflexão na performance art. E, nesse ponto, pergunto-me: sobre quais aspectos a filosofia poderá refletir sobre tal prática?
Gostaria aqui de fazer uma analogia ao questionamento do filósofo francês Paul Ricoeur sobre a possibilidade de uma filosofia da ação, diferentemente de uma ciência da ação e da ética e política. Em “O discurso da acção”, ele discorre sobre áreas das ciências humanas, como a Sociologia, que se propõem ao estudo da ação. A primeira analogia que faço é ao seu primeiro questionamento: Se as ciências humanas já se ocupam do estudo da ação, o que estaria relacionado ao estudo de uma filosofia da ação?
Outro questionamento seu refere-se ao campo de atuação da filosofia em si. Como diz, para Aristóteles, a ética era o campo de estudo da ação humana; entretanto, mirando a política como atuação na cidade. Levanta também a questão sobre a moral em Kant, que seria o domínio de estudo do campo prático. Assim, Paul Ricoeur se questiona: o estudo da ação deverá se resumir ao estudo da ética ou da moral? E é fazendo uma analogia a essa primeira que coloco a minha questão: um estudo filosófico da performance art deverá se resumir somente à estética?
A resposta de tal questão, seja positiva ou negativa, abre as mais diversas dificuldades. Ao se confirmar a estética como campo filosófico de estudo exclusivo para performance art, não estaríamos a delimitando somente ao campo da sensibilidade? E, no caso contrário, quais serão as outras áreas da filosofia que podem se debruçar sobre a performance art? E como?
Como vemos, o empreendimento para refletir sobre tais questionamentos, e quem sabe respondê-los, não é um dos mais simples. Talvez seja um empreendimento de longo caminho e que, no fim, nada se encontre, não se vá a lugar algum. No entanto, mesmo dentro dessas possibilidades, não deixa de ser um projeto instigante.
Assim, para traçar tal empreendimento, um primeiro momento seja tentar definir qual pode ser o campo de exploração da filosofia na performance. Mas em vez de partir dela mesma, talvez seja o momento de identificar o que outras áreas do saber humano já desenvolvem sobre o tema. Desse modo, acredito que a História e a Sociologia possuem grande peso sobre a produção teórica dessa prática artística. A História como marca primeira do registro desse meio no desenvolvimento da arte contemporânea. O que, na realidade, não quer dizer que há uma História da performance art, no sentido grande de História. Mas, como Paul Veyne afirma, há uma história comparada, ou seja, uma história da performance dentro de uma história da arte, que se inscreve no que pode ser chamado de a História.
Desse mesmo modo, encontramos o cruzamento direto com a sociologia, que, grosso modo, estuda a relação de tal prática com os corpos sociais. Ou seja: é certo que o feminismo e o multiculturalismo, por exemplo, encontraram na arte (e mais precisamente na performance) um meio de expressão/comunicação sem igual. A força de trazer questões de certo contexto, que ora era expressado ou representado e que agora pode tomar corpo em um momento real, presente, vivido e ainda artístico é de uma necessidade de estudo sem igual.
Quanto à performance art: História e Sociologia parecem se relacionar como o tempo e o espaço. E a filosofia? Pois bem, com certeza não se ocupará dos projetos artísticos individuais, com suas interferências específicas no espaço e no tempo, mas poderá muito bem se questionar sobre que espécie de espaço e tempo são esses. Talvez seu primeiro questionamento seja sobre como uma prática artística de expressões tão diversas pode ser reconhecida como a mesma. Ou a pergunta clássica: “O que é performance art?”.
O empreendimento para se fazer reflexões sobre tal pergunta talvez não tenha espaço aqui, mas isso não é impedimento para se traçar um esboço de uma possível investigação.
Comecemos: "O que é performance art?” é da mesma natureza que “o que é pintura?”, “o que é literatura?”, ou mesmo “o que é arte?”. Entretanto, no caso específico da performance art, essa pergunta é totalmente enganada, porque simplesmente o objeto da pergunta “O quê?”, na realidade, não existe. Ou seja: esperar uma resposta de “O que é performance art?” é esperar no vazio. Não há resposta satisfatória a essa questão, e não por conta da natureza experimental da performance art, mas por a pergunta ser errada. Não dá para se dizer o que é performance art, mas pode-se dizer como é. Seu “objeto” é o processo, é a ação.
Desta maneira, questionamo-nos novamente: Como é a performance art, se cada trabalho, cada artista, propõe e desenha sua estrutura? Não será a pergunta individual “Como é esta performance específica? Ou a outra performance?”
Uma performance é diferente da outra, é certo, mas isso não quer dizer que não possuam similaridades que as permitam ser reconhecidas como tal. Regina Melin, em seu livro A performance nas Artes Visuais, com a intenção de ampliar a definição de performance, já nos proporciona uma descrição do “como?” da performance, sem se reter a casos particulares:
Nas artes visuais, sempre que ouvimos a palavra ’performance’ é comum nos remetermos de imediato à utilização do corpo como parte constitutiva da obra, e nossas principais referências têm sido freqüentemente os anos 1960 e 1970. Muitas vezes, também, somos levados a pensar em um único formato, baseado no artista em uma ação ao vivo, visto por um público, num tempo e espaço específicos. (Melin, 2008, p. 7)
O que a autora se refere como “um único formato” é exatamente o “como?” da performance ao qual me referi. Mais do que formatar, corpo, ação, público, tempo e espaço são primitivos e essenciais para a performance art, para qualquer trabalho, por mais diversos os exemplares que existam. Esses elementos não a formatam, mas são necessários a ela. E, talvez, sejam eles que permitam se pensar numa linguagem da performance art. Esse também é um pensamento que abre um novo campo para investigação filosófica.
Mas gostaria de voltar ao “Como é a performance art?”, agora pensando no seu potencial de definição da prática. A pergunta em si exige, necessariamente, que a resposta seja, no mínimo, uma descrição. Entretanto, não será a descrição em si o fator de definição, mas, sim, o seu campo aberto para a investigação. Ou seja, a descrição “o artista em uma ação ao vivo, visto por um público, num tempo e espaço específicos” está longe de dar uma definição exata do que é performance art, mas traça o caminho para se pensar o “como?” em um nível mais profundo.
Desse modo, não é somente o “como?” da descrição que está a operar, mas o “como?” de cada elemento da performance, de “como” o são, “como” se relacionam, “como” se inter-significam, “como” se entrelaçam, fazendo com que a performance diferencie-se de outros meios que também apresentam os mesmos elementos-base e que, ainda, temos certeza de que não são performance art. Seja essas artes dança, teatro, orquestra ou banda de rock, um político num palanque ou num debate. Talvez seja a busca de respostas à pergunta “Como?”, nos níveis mais profundos em que se possa ir, tendo em vista o que há de essencial operando nos exemplares singulares, que nos permita dizer e pensar, conceitualmente, a performance art.
Portanto, mais do que respostas, aqui lanço dúvidas — que migram entre a teoria e a prática incensantemente. Dúvidas que fazem pensar constantemente, a cada momento em que o termo performance art é dito, escrito, pensado. Mas, com certeza, mais do que dúvidas, é um convite: à filosofia e à performance art.
Referências
MELIN, Regina. Performance nas artes visuais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
RICOEUR, Paul. O discurso da acção. Edições 70: Lisboa, 1988.
RICOEUR, Paul. O discurso da acção. Edições 70: Lisboa, 1988.
Texto retirado do site: http://www.fernandoribeiro.art.br/index.php/br/outros/artigos
Nenhum comentário:
Postar um comentário