segunda-feira, 15 de setembro de 2014

CorpoPoético: uma cartografia do lugar

CorpoPoético: uma cartografia do lugar 

Texto de Lilian Amaral

CorpoPoético funda-se na concepção ampliada da arte como experiência, tendo os lugares da 
cidade – reais e imaginários – como suporte para criações coletivas envolvendo artistas e não 
artistas. Do espetáculo à experiência da cidade, passa-se às diferenças entre visualidade e 
visibilidade, passa-se da cidade ao lugar. Opera-se uma distinção entre visualidade e 
visibilidade, entre recepção e percepção, entre comunicação e informação. Em todas essas 
diferenças se produzem metamorfoses do olhar. 

CorpoPoético: 
Confluência de espaços

O texto elaborado a seguir define-se mais como um roteiro e idéias e experiências
do que propriamente um ensaio. Entendemos a arte como provocadora de encontros e é
sobre encontros que constituem novas paisagens humanas que vamos iniciar nossa
discussão.
Cabe, antes, abordarmos certas conceituações que têm permeado nossa
investigação. Pode a produção artística contemporânea ser tomada como campo
potencial para um processo transdisciplinar de conscientização de nossa época? Quais
são as perspectivas transdisciplinares de re-significação dos espaços culturais – os locais
tradicionais da arte e a os da não-arte, o cotidiano? Como pensar a relação da arte e o
público no espaço urbano, uma vez que este espaço, na atualidade, alterou a lógica do
monumento, sendo ele próprio o monumento contemporâneo, instaurando cidadesmuseu,
estabelecendo analogias entre cidade e indústria cultural, turismo e
entertainment?
Diante de um panorama caracterizado por tamanha complexidade, apontamos a
experiência CorpoPoético, prática estética coletiva e colaborativa configurada no âmbito
da arte pública contemporânea, ou seja, da arte inspirada, tecida e construída no espaço
urbano e para o habitante urbano, a qual redefiniu decisivamente nossa plataforma de
atuação em inter-ação/intervenção urbana e humana. CorpoPoético desenvolveu em
finais dos anos 90 conceitos e ações que problematizaram e potencializaram, por
intermédio de diversas linguagens artísticas, meios expressivos e comunicacionais,
formas renovadas de apropriação e atribuição de sentido à experiência urbana cotidiana.
Partimos da idéia de que os artistas transfiguram os espaços cotidianos e culturais
entre locais de alienação e rituais de conscientização. Milton Santos comenta que
quando o homem se defronta com um espaço que não ajudou a criar, cuja história
desconhece, cuja memória lhe é estranha, esse lugar é a sede de uma vigorosa alienação.
Mas o homem, um ser dotado de sensibilidade, busca reaprender o que nunca lhe foi
ensinado, e vai pouco a pouco substituindo a sua ignorância do entorno pelo
conhecimento, ainda que fragmentário. Pareceria estranho mencionar um geógrafo para
ancorar um comentário sobre o momento de re-significação dos espaços culturais. O
que está em jogo dentro de uma reflexão sobre papéis e tendências dos locais públicos
de circulação da arte e por conseguinte, cultura e conhecimento, é a preocupação com a
geografia de uma sociedade partida na qual tanto artistas quanto não-artistas se
encontram.
William Mitchell aponta que a mobilização do público em torno de um projeto de
interesse da comunidade é tão importante quanto o resultado por ele desenvolvido, uma
vez que problematiza o cidadão-participante em relação à sua realidade cotidiana. Ao
ver seu ‘produto artístico’ inserido no circuito urbano e fruído por inúmeras pessoas, o
artista/público é levado a refletir sobre as formas de circulação e consumo da arte
contemporânea a partir dos mecanismos utilizados pela publicidade e comunicação de
massa (Mitchell, 1984: 153).
Compartilhando das idéias desses autores, a historiadora e crítica de arte norteamericana
Mary Jane Jacob, refere-se à Arte Pública como um processo de cooperação,
de troca mútua, um diálogo. O plano de obra do artista deveria permitir flexibilidade e
mudança. O artista deveria constantemente ultrapassar as barreiras que separam arte e
vida estabelecendo uma aliança vigorosa entre arte e vida cultural das comunidades,
com a possibilidade de que artistas saiam de museus e galerias e entrem no espaço
público e vivo da cidade, de que eles encontrem sua própria voz artística enquanto
ajudam a expressar a voz dos outros.
A intersecção entre arte e cultura cotidiana – arte e vida – esteve sempre presente
na história das manifestações artísticas, porém positivamente como transcendência e
imanência do poético ao sagrado, do decorativo aos rituais.
Talvez uma nostalgia de comunhão entre arte e vida sejam reflexos de situações
ou estados culturais onde essa categoria como entendemos hoje – arte, não fosse
fragmentada ou mesmo identificada separadamente – tudo era vida/rituais de
vida/casamentos/guerras/morte/vida. Há mais de duzentos anos que essa crise de
fragmentação é articulada pela cultura européia, hegemônica, branca. Mas, de que crise
estamos falando? Quando a arte se distancia do cotidiano, são inaugurados os templos
da arte nos salões e seguidamente, os museus da república, do deslocamento entre
mundo da arte – arte erudita – e vida com arte – as artes populares, dança, música, teatro
de rua, etc. Esses Passaram a ser exatamente mundos paralelos – onde as revoluções
artísticas, ou os artistas revolucionários, como Goya, Courbert, entre outros, marcaram a
história por cruzarem estas fronteiras.
Da virada do século XX até os dias de hoje a história das vanguardas reconta
justamente este espírito de insatisfação com este isolamento e a busca de imersão ou
‘rituais’ de confluência entre a arte e o agora – cotidiano. Inspirados por poetas,
filósofos, (especial referência a Baudelaire, Apollinaire, Bergson, Ponge, Merleau-
Ponty) a produção artística moderna e pós-moderna constrói e desconstrói essa distância
entre arte e vida (moldura, pedestal, cubo branco, anti-museu, anti-arte).
Hoje voltamos a debater o lugar da arte – fora do museu, no cotidiano – e mais
ainda a própria instituição ‘museu’ se vê pressionada a conquistar um lugar no cotidiano
urbano na era do espetáculo, ora confundindo-se ora competindo com shopping centers.
A informação e a comunicação que caracterizam a cidade contemporânea parece
emergir de uma lógica própria, aliada que está à sociedade de consumo.








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