Espectador na Performance: Tempo Presente
Rita Gusmão
O espectador como suporte e co-realizador da obra de arte performática, no seu modo ao vivo; a relação entre a fisicalidade das emoções e do tempo-espaço, sua expressão e formalização no corpo do espectador, tornando-o uma das expressões da obra. A fluência, percebida como desenvolvimento no espaço-tempo, interação e composição do fluidor com a obra, caracteriza melhor a relação da figura espectador com a obra na atualidade, pois não ao usufruto que leva esta relação, mas à troca e à reconstrução.
Quero ver aqui o espectador como figura do evento artístico, que se faz necessário nas diversas linguagens sob formatos diferenciados e que complementa a obra quando flui com ela. No caso das Artes Visuais, penso o espectador como o que
contempla o formal, que participa da atmosfera e da significação da obra no espaço, e que imerge em emoções predominantemente individuais.
Nas Artes Cênicas, a fluência da obra é coletiva, isto é, de pelo menos um
atuante e um espectador simultaneamente, e isto acopla à percepção formal a percepção corpórea e emotiva de outro. Na Peformance, no seu modo ao vivo, a fisicalidade das emoções e do tempo-espaço, se expressam e formalizam no corpo do espectador, tornando-o uma das expressões da obra. A fluência, percebida como desenvolvimento no espaço-tempo, interação e composição do fluidor com a obra, caracteriza melhor a relação da figura espectador com a obra na atualidade, pois não ao usufruto que leva esta relação, mas à troca e à reconstrução.
O espectador, receptor público, está na ponta do processo comunicativo em que
se inserem o criador, o espaço e a obra. É, ele quem realiza a obra, pois é ele quem compõe a sua totalidade, num processo ativo de percepção, associação e resposta ao criador. O funcionamento da obra de arte é um complexo que não poderá ser reduzido apenas à decifração de signos, e o espectador é o elo que possibilita que as várias funções da obra se articulem e se realizem.
No espectador acontecem simultaneamente as seis funções de linguagem
(Jakobson In: Ubersfeld, 2005) que podem nos servir para definir esta figura no
processo elaborador da obra. Primeiramente, a função emotiva, ou de motivação para, participar, refletir, negar ou continuar a obra; em segundo lugar a função conativa, que é a articulação interna de resposta do receptor segundo seu repertório de vivências anteriores; em seguida a função referencial, que garante que este receptor se remeta ao real e contextualize o signo escolhido pelo criador. A função fática mantém o espectador ciente de que está em presença de uma obra de arte e que as relações possíveis são de fato possíveis. A função metalingüística reflete a condição de produção, auxiliando o espectador na fluência dos signos e do todo da obra. E a função poética, que é a projeção dos signos e do complexo sígnico que perfaz a obra sobre a totalidade da sua presença no tempo e no espaço reais. O espectador é este complexo que compõe e completa a obra.
A idéia de evento artístico para designar os variados formatos utilizados na
atualidade para a mostra das obras de arte, surge da triangulação de três elementos comuns na obra de arte contemporânea: o tempo como conceito em debate ou conflito nas obras, segundo a rejeição a definições em contraponto à assunção ou provocação de dinâmica de transformação interna às obras, e em terceiro, a ação devoradora da imposição midiática da novidade constante.
A questão do tempo como conceito primordial nas relações do ser humano social
com o espaço e com sua produção simbólica, na atualidade toca à velocidade, como conflito. Para Paul Virílio, o limite do processo de percepção do movimento a que o espectador contemporâneo está submetido pelos motores, entre eles a câmera de filmar, treinou-o a usar o máximo da sua capacidade de identificação visual rápida para averiguar as imagens. A fluência das obras de arte é atingida por este treinamento, e o olhar que contemplava e tinha o tempo de ver, “não escolhe mais onde se deter porque a partir de então ele pode se deter não importa onde, em todos os lugares e em nenhum lugar, o que para constituir suas próprias imagens, volumes, valores, distâncias lhe fazem cruelmente falta” (Virilio, 1996: 67).
A questão da necessidade de dinâmica interna em movimento para a obra, e sua
transformação dentro desta dinâmica parece ter sido estimulada pela rejeição ao passado oriunda da modernidade. Esta modernidade se constituiu como uma figura crítica que suscitou no seu momento de auge o impulso de ruptura e inovação, de autoquestionamento, concordando com Subirats (Subirats: 1991). Penso no ato de assumir a deterioração dos materiais como linguagem das obras, ao invés de imobilizar o movimento do material para torná-lo plástico. E de implicar o espectador nesta deterioração, incitando-o a manipular, penetrar, usar ou destruir a obra. Estimulando a cultura da crise.
Quanto à ação devoradora da imposição midiática pela novidade constante,
parece ser uma influência pós moderna. Um demonstrativo da angústia artística diante da constatação de que nada é original, pois o pensamento é construído pelas vivências coletivas, desde a concepção uterina, e tudo o que colocamos à mostra, muito mais vem à tona do que é criado, sendo esta não-originalidade uma das prerrogativas pós modernistas. Estas características formam um contexto, onde as obras e até as linguagens, se querem eventuais e se desdobram em afirmar isto, se propondo a desconstruir os significados iniciais a cada elemento acrescentado ao contexto criativo.
A posmodernidade parece pensar o artista como um aglutinador de momentos de
passagem, onde as sínteses pairam, e cabe ao espectador realizá-las em si mesmo, no espaço ou na obra. Uma cultura da não-arte.
O espectador, moderno e/ou posmoderno, realiza com seu corpo um sistema
complexo de relações que liga a criação à fluência da arte. Outra prerrogativa do
posmodernismo, a identidade (Stangos, 1994), é a estrutura que lhe proporciona
consentir este sistema, que envolve intelecto, emotivo e corpóreo em igual medida. O corpo sobre si mesmo, e por acepção o espírito sobre si mesmo, envolvido pela fluência da obra de arte, dá vazão ao caráter polifônico da subjetividade (Guattari, 1998), permitindo uma colocação em atividade de vários canais perceptivos simultaneamente e o deslocamento da percepção mecânica do seu ao redor.
Na Performance o deslocamento exige do espectador que a cartografia deste lhe
seja consciente, pois caracteriza este evento artístico a agregação de territórios
existenciais, do criador e do espectador, por meio da experiência sensorial simultânea de ambos. A interação de campos de significado é uma atitude performática, que revela o plural de vozes que interagem na obra desde a sua concepção, implica uma consciência em seus fluidores da sobreposição de significados que lhe é resultante. O lugar do artista passa a ser o uso das interfaces que emergem dos campos de significância como material artístico, e a composição de ações e materiais que sejam capazes de contextualizá-las para o tempo e o espaço da fluência da obra com o espectador.
No processo performático, o artista é catalisador da circunstância efêmera da
obra para o espectador; desenvolve a materialidade da representação, através da
multiplicidade de discursos contrastantes implícitos nas ações-objetos. Esta
materialização se expressa por meio de discursos que entram em diálogo com o
espectador, gerando o vínculo energético indispensável e onde ambos são sujeitos do fazer, assim como suporte do prazer do outro. A noção de suporte se amplia se a pensarmos como vivência do desejo e seus fluxos emotivos. O espectador, esse
vivenciador da invenção sígnica, é solicitado a exercer suas próprias significações para os elementos da obra, e a fluir plenamente com a fusão dos elementos afetivos no prazer pela relação simbólica, pelo desejo representado.
A Performance está para o deslocamento da significação, para uma dispersão do
sujeito socialmente elaborado, em busca da autenticidade do seu desejo. O espaço e o tempo se integram para o cruzamento das referências e das simulações do ser; lugar onde a leitura seja o espaço da ativação da figuração para o espectador, da alteridade, do poder, da memória, do reflexo, da espacialização do pensamento, e mais uma vez, do desejo. Há uma ocupação com a corporalidade do espectador, que aponta para uma renovada relação social, cultural e política para o evento artístico. Uma área de discurso aberta na direção de uma figuração do reprimido, e até do impossível ou intolerável, sedutora para uma civilização imersa na tecnologização do cotidiano e na materialização mecanizada das ações. Esse corpo-espectador, multiculturalizado pelas mídias, convive com a velocidade, e esta se lhe afigura como espontânea e natural.
A velocidade, como manifestação do tempo, gera modos de conhecimento e de
representação. Na corporalidade, a velocidade marca a ausência do objeto e uma relação absolutamente efêmera com ele. Por outro lado, a velocidade gera uma substituição óptica da ausência, quero dizer que a velocidade gera um contexto de proximidade com o que já não está presente, tornando desnecessária a presença. Esta percepção vem sendo desenvolvida no espectador pelas mídias da imagem em movimento e pela cultura da não-arte. Ela apaga os indícios materiais da realidade, imprimindo uma espécie de apreciação seqüencial do mundo, que é todo ele fragmentação e necessidade de vivência do presente, pois a velocidade deixa atrás de si o vazio.
Um olhar treinado para captar, sem perceber, a seqüência de imagens que
desfilam ininterruptamente no mundo, levará a percepção a transformar o tempo
presente ao espectador em tempo real. O tempo da percepção será fragmentado pela diferença entre a ação de olhar e a necessidade de ver/captar imagens em seqüência contínua de movimento.
A velocidade reestrutura a noção de tempo presente para o espectador, e este na
posmodernidade contém a marca da percepção pessoal. A velocidade consegue garantir a condição de verdadeirização do evento, mas deixa livre o espectador para vivenciar sua condição de efemeridade. Na fluência da Performance o tempo presente é o canal de abdicação da racionalidade pura, que possibilita a abertura para percepções simbolizadoras do evento. A aceitação do processo de verdadeirização individual é parte do contexto de captação do complexo sígnico da Performance. O tempo presente é um contexto narrativo que absorve as percepções negativas e positivas, e que vai se adaptando aos imprevistos e às surpresas, gerando um momento simbólico único, e que se fortalece por ser dependente do estado do espectador em relação ao espaço e às ações da Performance.
A Performance é pensada aqui como a arte do instante presente, o tempo real
substanciado e se tornando presente para a percepção, no sentido de que todo o contexto continua sendo criado na presença e no diálogo de presenças entre criador e espectadorcriador. Ambos estarão presentes nas suas pessoas, as ações serão ampliadas para continuarem mais e mais presentes e a efemeridade comporá a ritualização do instante. O tempo presente como ação de leitura que emerge do contato e do diálogo com os corpos atuantes. A presença como única mediação da fluência da obra. Ao encarar o tempo presente como categoria definidora de ação performática, a atitude reconstrutiva e aberta em relação à realização da obra é seu complemento. A produção de relações só se pode realizar de fato numa atitude de presentificar o tempo e a presença do outro. Estar com e promover a relação constante, assumir a presença e o tempo presente de cada espaço e da maioria possível de espectadores como o roteiro da ação performática.
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Referências Bibliográficas
COHEN, Renato. Performance Como Linguagem. São Paulo: Perspectiva. 2002.
STANGOS, Nikko. Concepts of Modern Art. From Fauvism to Postmodernism. Third Edition,
London: Thames and Hudson. 1994.
SUBIRATS, Eduardo. Da vanguarda ao Pós-moderno. 4ª. Edição. São Paulo: Nobel. 1991.
UBERSFELD, Anne. Para ler o Teatro. São Paulo: Perspectiva. 2005.
VIRILIO, Paul. A Arte do Motor. Tradução Paulo Roberto Pires. São Paulo: Estação Liberdade,
1996.