quarta-feira, 27 de setembro de 2017

Cuceta, o curta?doc?performance?

Cuceta aconteceu enquanto arte e ritual de transição, enquanto comida baiana, tatuagem, modificação corporal. Uma travesti vai ao encontro de Dr. Elton Panamby para realizar o procedimento que mudaria a sua vida: a cuceta, uma tatuagem sobre a região anal e perianal. Muito mais que um risco no corpo, a sua vida se transformaria completamente.
FICHA TÉCNICA
Performance: Tertuliana Lustosa e Sara Elton Panamby
Camera: Matheus Araújo e Helena Assanti
Montagem: Tertuliana Lustosa
Assista ao curta no link:
https://vimeo.com/234362743

segunda-feira, 24 de abril de 2017

blasFÊMEA: corpo e arte como pecado

Rezando ajoelhada no genuflexório, as unhas e o cabelo em destaque da Mc Linn da Quebrada iniciam blasFÊMEA, “transclipe” em que a experiência transfeminista ganha proporções do cotidiano periférico, das vozes da rua. A obra audiovisual e musical da cantora atinge novamente em blasFÊMEA um patamar poético sobre a causa trans de uma forma não higiênica, onde as vozes pretas, periféricas e putas se concretizam. Ser trans, travesti, lésbica no país que mais mata travestis e transexuais do mundo já é pecado e pior ainda é a custódia daquela parte da população LGBT que não corresponde a uma norma de comportamento e imagem. É sobre o padrão central, elitista, racista e transfóbico que blasFÊMEA constrói sua poética de desvio, de corpo, de movimento, de amor e de afetividade.

No início do clipe, ao som clássico do violino e sob a luz baixa, se faz uma paisagem pós-pornográfica com um ar transcedental. As imagens flertam com elementos simbólicos da cultura cristã, o que me faz lembrar as performances da artista Viviane Beleboni nas paradas do orgulho LGBT em São Paulo de 2016 (quando a artista se crucificou) e 2017 principalmente por elas apontarem a intolerância aos corpos LGBT pregadas por certas vertentes cristãs. Linn ressignifica e subverte, assim, os signos da cultura colonial com corpos contrahegemônicos – a equipe do vídeo conta com participações, sobretudo, de pessoas cis/trans femininas e de LGBTs.

A voz da Linn surge após um relato familiar. Fez-me encher os olhos d’água e lembrar como a minha família também desrespeita meus pronomes, desacredita de meus sonhos, me mata, me expulsa de casa, me induz a possibilidades mais brandas de ser eu para que possa me apresentar melhor à sociedade. Logo em seguida, o rap vem como tiro. Trava, favela, ruas, prostituição, “Ela não quer pau, ela quer paz.” O rap da Linn fez dessa vez cair a primeira lágrima com o sal dos preterimentos, com a secura da nossa sede afetiva, sim, travestis têm sede afetiva e podem se sentir atraídas sexual e afetivamente por homens, mulheres, pessoas. Só que a prostituição é muitas vezes a única porta para a população travesti. E muitas vezes esquecemos que não é só sobre trabalho, pois mesmo empregadas no mercado formal as pessoas trans ainda vivem o abandono afetivo, a imposição de uma competitividade entre mulheres, a culpa por amar. Quem (trans) nunca percebeu a insegurança das pessoas que estão na sua companhia? No Brasil, infelizmente, ainda não há socialização para a subversão travesti que não passe pela sua hipersexualização e pela prostituição. Paz.

O bonde das bixas e das travestis nas ruas cria uma imagem que aponta para uma coletividade e o rap segue com palavras em pajubá, que por sua vez agrega uma carga do cotidiano da pista e das comunidades transvestigeneres. O pajubá trata-se do dialeto utilizado sobretudo por travestis e pelo povo praticante de religiões afro-brasileiras que mixa a língua portuguesa com numerosas palavras e expressões provenientes de línguas africanas, como o iorubá.

Ao fim, banho de ervas, axé e a certeza que fica é que Linn da Quebrada roteirizou, cantou e dirigiu um transclipe dando uma contrapartida babadeira à midia atual, que trata o tema trans de forma patologizante, infantilizante e higienizada para os olhos da tradicional família brasileira.

Segue o link para quem puder contribuir com o financiamento do disco da Linn da Quebrada  https://www.kickante.com.br/campanhas/linn-da-quebrada-bixa-pode-fazer-um-pedido-0

por Tertuliana Lustosa

sábado, 10 de dezembro de 2016

Revoltas Pulsantes

No dia 8 de dezembro foi realizada uma roda de conversa no Centro Acadêmico do instituto de Artes sobre manifestos contemporâneos, abusos institucionais, revoltas na história do Brasil e no cenário da poética suja contemporânea. 
A mesa foi puxada peles debatedores Rafaele Ferreira, Tertuliana Lustosa e Cae Bellangero, o que resultou numa ocupação do Centro acadêmico com ações que inseriam o corpo estudantil dissidente trans/negre/nordestine na UERJ.





sexta-feira, 25 de novembro de 2016

PreparaNem e Núcleo de Pesquisa Corporal no OcupaUFF

Sou homem de buceta!!
Ame ser trans 
Não somos doentes
Trava 
Puta
Mapoa
Edy
Neca odara
Existem corpos que você nem imagina
Mulher de pênis 
Homem de vagina
Bixa nordestina viva!
viado trans também racha
(R)Existimos
Quebra o armario y ocúpa o corpo
Minha buceta masculina

Essas foram as frases-manifestos produzidas coletivamente durante uma atividades do PreparaNem em parceria com o Núcleo de Pesquisa Corporal. O evento ocorrido no Ocupa UFF, no dia 24 de novembro de 2015, chamou a atenção dos estudantes universitários para ocupar e resistir junto com os trans e as travestis! 
"Pessoas trans, educação e universidade" foi uma mesa de debate com profes e estudantes trans do PreparaNem, representades por Luiza Ferreira, Leticia Suhet e Tertuliana Lustosa que levantou temas como a história do PreparaNem e a importância de se trazer para o espaço acadêmico discussões sobre o respeito do uso do nome social, interseccionalidade, a importância da despatologização das identidades trans, cotas para pessoas trans, processos de transição, dentre outros temas políticos relacionados às pautas trans.
O evento concluiu com uma oficina da cartazes ocupando a universidade com vozes dissonantes e resistentes!





terça-feira, 15 de novembro de 2016

O corpo trans como diáspora

Uma transição nem sempre é apenas uma nova performatividade de gênero: é também diáspora, nos seus diversos sentidos. Trans significa além, mas pensando em contextos micro, o desvio de gênero está, na maioria dos casos, relacionado à partida. Digo, desde a partida de casa, por exemplo... O meu corpo que não coube mais no estado onde eu nasci e morei por algum tempo – Piauí – nem na cidade onde eu me criei – Salvador –, almejou o movimento de retirada. O que me leva a pensar que assim como os corpos dos meus ancestrais piauienses e baianos buscaram outros territórios por uma nova perspectiva de vida, eu também, por motivos semelhantes e outros também o fiz.

Deste modo, pensar a complexidade da ideia de pertencimento identitário é pensar que o movimento de uma travesti nordestina deixar suas cidades e famílias diz respeito tanto a uma questão de gênero quanto a uma questão étnica/territorial. A geopolítica do corpo nordestino trans remete a precariedades multifacetadas, tão caras à sua ancestralidade que fica difícil assinalar um processo de migração de forma homogênea. Então o corpo que migra ganha camadas que são talvez do estado híbrido.

Meu próximo ato poético eu não posso mais chamá-lo senão de retorno ao deslocamento. Nesses tempos da guerra fragmentada, certas frequências em mim careceram de escuta e o sujeito que em mim almeja as revoluções precisa agora de raiz. Estou falando, mesmo que não pareça, do movimento de ancestralidade como prática de autoconhecimento e de reconhecimento. Corrente Milk, ou o leite maldito que escorre dos seios hormonizados, é uma gota de displicência que eu me darei a mim mesma, derrota de um racionalismo que quis, derrota de mim. Não, o giro decolonial, nem a filosofia da diferença, nem mesmo ação direta serão as minhas verdades e os meus motes de fé. Nem autodeclarar a contradição me isentaria de alguma forma de qualquer responsabilidade ética.

Hoje tenho as passagens compradas para a cidade em que eu nasci: Corrente. Fica no sul do Piauí. Nessa pequena cidade, habitam tantas frequências que me chamam e eu não sei definir, tantas pessoas que me constituem enquanto ser fricção/poesia. Não me avexo para o que vier e te digo que na roça e no sertão é onde se faz tanto transfeminismo que a sinhá nem imagina!

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Fala que desemboca à terra firme que pisa

Entrevista com Sta


TERTULIANA LUSTOSA – Após o sinal diga o seu nome e a cidade de onde está falando...

STALLONE ABRANTES – Eu sou uma bixa revolucionária paradisíaca, nascida na Paraíba, moradora da cidade do Rio de Janeiro e estudante do Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFF.

T- Stallone, como você pensa a questão da nordestinidade?

S – Acho que pensar em nordestinidades é pensar inclusive de como a gente se constitui enquanto povo, enquanto Brasil. É negada a nossa relação com a ancestralidade que é nordestina e que é do povo chegado antes da colonização chegar.

T – Percebo que muitas das abordagens contemporâneas que discutem a diferença e a precariedade partem de um olhar sobre as ideias de centralidade e de marginalidade. Como você pensa isso no corpo nordestino?

S – Enquanto existência nordestina, nós somos negados à própria circulação, esquecendo que essa circulação está totalmente atrelada à própria noção de territorio. E outra coisa que se pode trazer é o corpo que circula nesse território. Mesclando território e corpo, a nordestinidade vai aparecer enquanto a própria infâmia, aquilo que não se quer ocupar uma centralidade, que se queira colocar à margem. E aí eu acho que a gente tem desmistificado essa construção que nos impõem e que naturaliza essa centralidade. A história nos é negada, mas remeter a nossa história ao nosso corpo é justamente desconstruir, desmistificar e criar outras possíveis centralidades que não sejam essa que nos é dada.

T – Você relaciona a questão da sua nordestinidade à sua prática acadêmica na psicologia?

S – Não tem como fugir, é o que me constitui. Por exemplo, na minha atual pesquisa eu tento atrelar a história da minha mãe à produção do conhecimento: como é que uma mulher nordestina que tem sete filhos e passou por várias questões tenciona o próprio campo da academia? Eu acho que ela é importante de estar no meu fazer... e pensar a nordestinidade, esse elemento que me constitui, é pensar um plano ético na minha pesquisa.

T – Alguma(s) palavra(s) final(is)?

S – Nordeste.

17/10/2016


quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Ferindo o corpo patologia

Cuceta e transexualidade


Das relações prático-teóricas que atravessaram a minha vida nos últimos tempos, algumas escritas corporais me deram outras perspectivas sobre o meu corpo e sobre a minha visão da lógica feminina no corpo trans. Uma delas foi a ideia que tive de tatuar um desenho de uma genitália sobre a região anal e perianal. Para tal processo convidei o Dr. Elton Panamby, e o que decorreu no processo de construção dessa imagem foi que o desenho que criamos não se propunha nem a um realismo nem a uma construção genital que imitasse o humano. Talvez porque a experiência de gênero a qual nos submetíamos estivesse mais relacionada a processos escavatórios e de escutas de sonhos do que propriamente a métodos da medicina de intervenção cirúrgica da transexualização.
Fica claro que até a segunda metade do século XX o conceito de transexual não existia, pois, nessa época, dos estudos efetivados por Richard Von Kraff-Ebing, uma referência se destaca. O caso de um homem nascido na Hungria que, após a adolescência, passa a se sentir e viver como mulher – e, assim, acredita que é – torna-se uma referência, sendo a mais antiga sobre o tema, numa narração autobiográfica. A descrição torna-se quase um roteiro do que serão as futuras narrativas das pessoas chamadas transexuais, sendo referência, porque, pela primeira vez, não há traços de hermafroditismo. Nesse caso, Krafft-Ebing se refere ao estágio de transição para a ilusão de mudança sexual,como um tipo de confusão mental que faz a pessoa crer que está num corpo sexual errado. 
 Nossos corpos também mudam: a invenção das categorias "travesti" e "transexual" no discurso científico. LEITE JR., Jorge. Apresentação: Berenice Bento. São Paulo: Annablume, 2011. 240 p.

A categoria da transexualidade ainda hoje está classificada como Transtorno de Disforia de Gênero, e é com base na marcação patológica que essa categoria ainda existe na prática médica psicológica e psiquiátrica no Brasil. 
Adentrando tal discussão, o nome que eu tinha em mente para a tatuagem era “cuceta”, conceito que se propôs enquanto gesto de desorganização anatômica da construção de feminilidade transexual. A cuceta, para mim, agia justamente sobre a ideia de que existe uma via única de reescrita genital, como propõe a psiquiatria sobre a suposta patologia de transexualismo. O corpo é a todo momento taxonomizado pelo cientificismo, que só autoriza a permanência e o binarismo como escolhas corporais. Se você sai da categoria homem, você é doente e precisa de cirurgias para adquirir outra identidade fixa, a de mulher transexual.
Desenhar algo sobre a zona de disforia construída pelos padrões de corpo feminino, para mim, foi decisivo e abriu portas para tomadas de decisão sobre o meu corpo. Tanto que pouco tempo depois realizei outra intervenção sobre a reagião: uma orquiectomia, que resultou na esterilidade e me fez não produzir mais hormônios (nem testosterona nem estrogênio). O meu corpo que não produz hormônios agora é, ele inteiro, a cuceta e ela mesma já é outra coisa além do nome e da classificação. Penso que não precisamos de nomes e taxonomias para racionalizar a nossa dissidência, e nessa contradição optei por ferir o corpo patologia.

Cuceta, com Elton Panamby (Registro: Helena Assanti)
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