Cuceta aconteceu enquanto arte e ritual de transição, enquanto comida baiana, tatuagem, modificação corporal. Uma travesti vai ao encontro de Dr. Elton Panamby para realizar o procedimento que mudaria a sua vida: a cuceta, uma tatuagem sobre a região anal e perianal. Muito mais que um risco no corpo, a sua vida se transformaria completamente.
FICHA TÉCNICA
Performance: Tertuliana Lustosa e Sara Elton Panamby
Camera: Matheus Araújo e Helena Assanti
Montagem: Tertuliana Lustosa
Rezando ajoelhada no genuflexório, as unhas e o cabelo em destaque
da Mc Linn da Quebrada iniciam blasFÊMEA, “transclipe” em que a experiência transfeminista
ganha proporções do cotidiano periférico, das vozes da rua. A obra audiovisual e musical da
cantora atinge novamente em blasFÊMEA um patamar poético sobre a causa trans de
uma forma não higiênica, onde as vozes pretas, periféricas e putas se
concretizam. Ser trans, travesti, lésbica no país que mais mata travestis e
transexuais do mundo já é pecado e pior ainda é a custódia daquela parte da
população LGBT que não corresponde a uma norma de comportamento e imagem. É
sobre o padrão central, elitista, racista e transfóbico que blasFÊMEA constrói
sua poética de desvio, de corpo, de movimento, de amor e de afetividade.
No início do clipe, ao som clássico do violino e sob a luz
baixa, se faz uma paisagem pós-pornográfica com um ar transcedental. As imagens
flertam com elementos simbólicos da cultura cristã, o que me faz lembrar as performances da artista Viviane Beleboni nas paradas do orgulho LGBT
em São Paulo de 2016 (quando a artista se crucificou) e 2017 principalmente por
elas apontarem a intolerância aos corpos LGBT pregadas por certas vertentes cristãs. Linn ressignifica
e subverte, assim, os signos da cultura colonial com corpos contrahegemônicos –
a equipe do vídeo conta com participações, sobretudo, de pessoas cis/trans
femininas e de LGBTs.
A voz da Linn surge após um relato familiar. Fez-me encher
os olhos d’água e lembrar como a minha família também desrespeita meus
pronomes, desacredita de meus sonhos, me mata, me expulsa de casa, me induz a
possibilidades mais brandas de ser eu para que possa me apresentar melhor à
sociedade. Logo em seguida, o rap vem como tiro. Trava, favela, ruas,
prostituição, “Ela não quer pau, ela quer paz.” O rap da Linn fez dessa vez
cair a primeira lágrima com o sal dos preterimentos, com a secura da nossa sede
afetiva, sim, travestis têm sede afetiva e podem se sentir atraídas sexual e
afetivamente por homens, mulheres, pessoas. Só que a prostituição é muitas
vezes a única porta para a população travesti. E muitas vezes esquecemos que
não é só sobre trabalho, pois mesmo empregadas no mercado formal as pessoas
trans ainda vivem o abandono afetivo, a imposição de uma competitividade entre
mulheres, a culpa por amar. Quem (trans) nunca percebeu a insegurança das
pessoas que estão na sua companhia? No Brasil, infelizmente, ainda não há
socialização para a subversão travesti que não passe pela sua hipersexualização
e pela prostituição. Paz.
O bonde das bixas e das travestis nas ruas cria uma imagem que
aponta para uma coletividade e o rap segue com palavras em pajubá, que por sua
vez agrega uma carga do cotidiano da pista e das comunidades transvestigeneres.
O pajubá trata-se do dialeto utilizado sobretudo por travestis e pelo povo praticante
de religiões afro-brasileiras que mixa a língua portuguesa com numerosas
palavras e expressões provenientes de línguas africanas, como o iorubá.
Ao fim, banho de ervas, axé e a certeza que fica é que Linn
da Quebrada roteirizou, cantou e dirigiu um transclipe dando uma contrapartida babadeira
à midia atual, que trata o tema trans de forma patologizante, infantilizante e
higienizada para os olhos da tradicional família brasileira.
No dia 8 de dezembro foi realizada uma roda de conversa no Centro Acadêmico do instituto de Artes sobre manifestos contemporâneos, abusos institucionais, revoltas na história do Brasil e no cenário da poética suja contemporânea. A mesa foi puxada peles debatedores Rafaele Ferreira, Tertuliana Lustosa e Cae Bellangero, o que resultou numa ocupação do Centro acadêmico com ações que inseriam o corpo estudantil dissidente trans/negre/nordestine na UERJ.
Essas foram as frases-manifestos produzidas coletivamente durante uma atividades do PreparaNem em parceria com o Núcleo de Pesquisa Corporal. O evento ocorrido no Ocupa UFF, no dia 24 de novembro de 2015, chamou a atenção dos estudantes universitários para ocupar e resistir junto com os trans e as travestis!
"Pessoas trans, educação e universidade" foi uma mesa de debate com profes e estudantes trans do PreparaNem, representades por Luiza Ferreira, Leticia Suhet e Tertuliana Lustosa que levantou temas como a história do PreparaNem e a importância de se trazer para o espaço acadêmico discussões sobre o respeito do uso do nome social, interseccionalidade, a importância da despatologização das identidades trans, cotas para pessoas trans, processos de transição, dentre outros temas políticos relacionados às pautas trans.
O evento concluiu com uma oficina da cartazes ocupando a universidade com vozes dissonantes e resistentes!
Uma transição nem sempre é apenas uma nova performatividade
de gênero: é também diáspora, nos seus diversos sentidos. Trans significa além, mas
pensando em contextos micro, o desvio de gênero está, na maioria dos casos,
relacionado à partida. Digo, desde a partida de casa, por exemplo... O meu corpo que não
coube mais no estado onde eu nasci e morei por algum tempo – Piauí – nem na
cidade onde eu me criei – Salvador –, almejou o movimento de retirada. O que me leva a pensar que assim
como os corpos dos meus ancestrais piauienses e baianos buscaram outros
territórios por uma nova perspectiva de vida, eu também, por motivos semelhantes e outros também o fiz.
Deste modo, pensar a complexidade da ideia de pertencimento
identitário é pensar que o movimento de uma travesti nordestina deixar suas
cidades e famílias diz respeito tanto a uma questão de gênero quanto a uma
questão étnica/territorial. A geopolítica do corpo nordestino trans remete a precariedades multifacetadas, tão caras à sua ancestralidade que fica difícil assinalar um
processo de migração de forma homogênea. Então o corpo que migra ganha camadas que são talvez do
estado híbrido.
Meu próximo ato poético eu não posso mais chamá-lo senão de
retorno ao deslocamento. Nesses tempos da guerra fragmentada, certas frequências em mim careceram
de escuta e o sujeito que em mim almeja as revoluções precisa agora de raiz.
Estou falando, mesmo que não pareça, do movimento de ancestralidade como
prática de autoconhecimento e de reconhecimento. Corrente Milk, ou o leite
maldito que escorre dos seios hormonizados, é uma gota de displicência que eu
me darei a mim mesma, derrota de um racionalismo que quis, derrota de mim. Não,
o giro decolonial, nem a filosofia da diferença, nem mesmo ação direta serão as
minhas verdades e os meus motes de fé. Nem autodeclarar a contradição me
isentaria de alguma forma de qualquer responsabilidade ética.
Hoje tenho as passagens compradas para a cidade em que eu
nasci: Corrente. Fica no sul do Piauí. Nessa pequena cidade, habitam tantas
frequências que me chamam e eu não sei definir, tantas pessoas que me constituem
enquanto ser fricção/poesia. Não me avexo para o que vier e te digo que na roça e no
sertão é onde se faz tanto transfeminismo que a sinhá nem imagina!
TERTULIANA LUSTOSA –
Após o sinal diga o seu nome e a cidade de onde está falando...
STALLONE ABRANTES –
Eu sou uma bixa revolucionária paradisíaca, nascida na Paraíba, moradora da
cidade do Rio de Janeiro e estudante do Programa de Pós-graduação em Psicologia
da UFF.
T- Stallone, como
você pensa a questão da nordestinidade?
S – Acho que
pensar em nordestinidades é pensar inclusive de como a gente se constitui
enquanto povo, enquanto Brasil. É negada a nossa relação com a ancestralidade
que é nordestina e que é do povo chegado antes da colonização chegar.
T – Percebo que
muitas das abordagens contemporâneas que discutem a diferença e a precariedade
partem de um olhar sobre as ideias de centralidade e de marginalidade. Como
você pensa isso no corpo nordestino?
S – Enquanto
existência nordestina, nós somos negados à própria circulação, esquecendo que
essa circulação está totalmente atrelada à própria noção de territorio. E outra
coisa que se pode trazer é o corpo que circula nesse território. Mesclando
território e corpo, a nordestinidade vai aparecer enquanto a própria infâmia,
aquilo que não se quer ocupar uma centralidade, que se queira colocar à margem.
E aí eu acho que a gente tem desmistificado essa construção que nos impõem e
que naturaliza essa centralidade. A história nos é negada, mas remeter a nossa
história ao nosso corpo é justamente desconstruir, desmistificar e criar outras
possíveis centralidades que não sejam essa que nos é dada.
T – Você
relaciona a questão da sua nordestinidade à sua prática acadêmica na psicologia?
S – Não tem como
fugir, é o que me constitui. Por exemplo, na minha atual pesquisa eu tento
atrelar a história da minha mãe à produção do conhecimento: como é que uma mulher
nordestina que tem sete filhos e passou por várias questões tenciona o próprio
campo da academia? Eu acho que ela é importante de estar no meu fazer... e
pensar a nordestinidade, esse elemento que me constitui, é pensar um plano ético
na minha pesquisa.
Das relações prático-teóricas que atravessaram a minha
vida nos últimos tempos, algumas escritas corporais me deram outras
perspectivas sobre o meu corpo e sobre a minha visão da lógica feminina no corpo
trans. Uma delas foi a ideia que tive de tatuar um desenho de uma genitália
sobre a região anal e perianal. Para tal processo convidei o Dr. Elton Panamby,
e o que decorreu no processo de construção dessa imagem foi que o desenho que
criamos não se propunha nem a um realismo nem a uma construção genital que
imitasse o humano. Talvez porque a experiência de gênero a qual nos submetíamos
estivesse mais relacionada a processos escavatórios e de escutas de sonhos do
que propriamente a métodos da medicina de intervenção cirúrgica da
transexualização.
Fica claro que até a segunda metade do século XX o conceito de transexual não existia, pois, nessa época, dos estudos efetivados por Richard Von Kraff-Ebing, uma referência se destaca. O caso de um homem nascido na Hungria que, após a adolescência, passa a se sentir e viver como mulher – e, assim, acredita que é – torna-se uma referência, sendo a mais antiga sobre o tema, numa narração autobiográfica. A descrição torna-se quase um roteiro do que serão as futuras narrativas das pessoas chamadas transexuais, sendo referência, porque, pela primeira vez, não há traços de hermafroditismo. Nesse caso, Krafft-Ebing se refere ao estágio de transição para a ilusão de mudança sexual,como um tipo de confusão mental que faz a pessoa crer que está num corpo sexual errado.
Nossos corpos também mudam: a invenção das categorias "travesti" e "transexual" no discurso científico. LEITE JR., Jorge. Apresentação: Berenice Bento. São Paulo: Annablume, 2011. 240 p.
A categoria da transexualidade ainda hoje está classificada como Transtorno de Disforia de Gênero, e é com base na marcação patológica que essa categoria ainda existe na prática médica psicológica e psiquiátrica no Brasil. Adentrando tal discussão, o nome que eu tinha em mente para a tatuagem era
“cuceta”, conceito que se propôs enquanto gesto de desorganização
anatômica da construção de feminilidade transexual. A cuceta, para mim, agia
justamente sobre a ideia de que existe uma via única de reescrita genital, como
propõe a psiquiatria sobre a suposta patologia de transexualismo. O corpo é a todo momento taxonomizado pelo cientificismo, que só autoriza a permanência e o binarismo como escolhas corporais. Se você sai da categoria homem, você é doente e precisa de cirurgias para adquirir outra identidade fixa, a de mulher transexual.
Desenhar algo sobre a zona de disforia
construída pelos padrões de corpo feminino, para mim, foi decisivo e abriu portas
para tomadas de decisão sobre o meu corpo. Tanto que pouco tempo depois
realizei outra intervenção sobre a reagião: uma orquiectomia, que resultou na esterilidade e me fez não produzir mais hormônios (nem testosterona nem estrogênio). O meu corpo que não
produz hormônios agora é, ele inteiro, a cuceta e ela mesma já é outra coisa
além do nome e da classificação. Penso que não precisamos de nomes e taxonomias
para racionalizar a nossa dissidência, e nessa contradição optei por ferir o corpo patologia.
Cuceta, com Elton Panamby (Registro: Helena Assanti)