quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Ferindo o corpo patologia

Cuceta e transexualidade


Das relações prático-teóricas que atravessaram a minha vida nos últimos tempos, algumas escritas corporais me deram outras perspectivas sobre o meu corpo e sobre a minha visão da lógica feminina no corpo trans. Uma delas foi a ideia que tive de tatuar um desenho de uma genitália sobre a região anal e perianal. Para tal processo convidei o Dr. Elton Panamby, e o que decorreu no processo de construção dessa imagem foi que o desenho que criamos não se propunha nem a um realismo nem a uma construção genital que imitasse o humano. Talvez porque a experiência de gênero a qual nos submetíamos estivesse mais relacionada a processos escavatórios e de escutas de sonhos do que propriamente a métodos da medicina de intervenção cirúrgica da transexualização.
Fica claro que até a segunda metade do século XX o conceito de transexual não existia, pois, nessa época, dos estudos efetivados por Richard Von Kraff-Ebing, uma referência se destaca. O caso de um homem nascido na Hungria que, após a adolescência, passa a se sentir e viver como mulher – e, assim, acredita que é – torna-se uma referência, sendo a mais antiga sobre o tema, numa narração autobiográfica. A descrição torna-se quase um roteiro do que serão as futuras narrativas das pessoas chamadas transexuais, sendo referência, porque, pela primeira vez, não há traços de hermafroditismo. Nesse caso, Krafft-Ebing se refere ao estágio de transição para a ilusão de mudança sexual,como um tipo de confusão mental que faz a pessoa crer que está num corpo sexual errado. 
 Nossos corpos também mudam: a invenção das categorias "travesti" e "transexual" no discurso científico. LEITE JR., Jorge. Apresentação: Berenice Bento. São Paulo: Annablume, 2011. 240 p.

A categoria da transexualidade ainda hoje está classificada como Transtorno de Disforia de Gênero, e é com base na marcação patológica que essa categoria ainda existe na prática médica psicológica e psiquiátrica no Brasil. 
Adentrando tal discussão, o nome que eu tinha em mente para a tatuagem era “cuceta”, conceito que se propôs enquanto gesto de desorganização anatômica da construção de feminilidade transexual. A cuceta, para mim, agia justamente sobre a ideia de que existe uma via única de reescrita genital, como propõe a psiquiatria sobre a suposta patologia de transexualismo. O corpo é a todo momento taxonomizado pelo cientificismo, que só autoriza a permanência e o binarismo como escolhas corporais. Se você sai da categoria homem, você é doente e precisa de cirurgias para adquirir outra identidade fixa, a de mulher transexual.
Desenhar algo sobre a zona de disforia construída pelos padrões de corpo feminino, para mim, foi decisivo e abriu portas para tomadas de decisão sobre o meu corpo. Tanto que pouco tempo depois realizei outra intervenção sobre a reagião: uma orquiectomia, que resultou na esterilidade e me fez não produzir mais hormônios (nem testosterona nem estrogênio). O meu corpo que não produz hormônios agora é, ele inteiro, a cuceta e ela mesma já é outra coisa além do nome e da classificação. Penso que não precisamos de nomes e taxonomias para racionalizar a nossa dissidência, e nessa contradição optei por ferir o corpo patologia.

Cuceta, com Elton Panamby (Registro: Helena Assanti)
.

Nenhum comentário:

Postar um comentário