segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Fala que desemboca à terra firme que pisa

Entrevista com Sta


TERTULIANA LUSTOSA – Após o sinal diga o seu nome e a cidade de onde está falando...

STALLONE ABRANTES – Eu sou uma bixa revolucionária paradisíaca, nascida na Paraíba, moradora da cidade do Rio de Janeiro e estudante do Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFF.

T- Stallone, como você pensa a questão da nordestinidade?

S – Acho que pensar em nordestinidades é pensar inclusive de como a gente se constitui enquanto povo, enquanto Brasil. É negada a nossa relação com a ancestralidade que é nordestina e que é do povo chegado antes da colonização chegar.

T – Percebo que muitas das abordagens contemporâneas que discutem a diferença e a precariedade partem de um olhar sobre as ideias de centralidade e de marginalidade. Como você pensa isso no corpo nordestino?

S – Enquanto existência nordestina, nós somos negados à própria circulação, esquecendo que essa circulação está totalmente atrelada à própria noção de territorio. E outra coisa que se pode trazer é o corpo que circula nesse território. Mesclando território e corpo, a nordestinidade vai aparecer enquanto a própria infâmia, aquilo que não se quer ocupar uma centralidade, que se queira colocar à margem. E aí eu acho que a gente tem desmistificado essa construção que nos impõem e que naturaliza essa centralidade. A história nos é negada, mas remeter a nossa história ao nosso corpo é justamente desconstruir, desmistificar e criar outras possíveis centralidades que não sejam essa que nos é dada.

T – Você relaciona a questão da sua nordestinidade à sua prática acadêmica na psicologia?

S – Não tem como fugir, é o que me constitui. Por exemplo, na minha atual pesquisa eu tento atrelar a história da minha mãe à produção do conhecimento: como é que uma mulher nordestina que tem sete filhos e passou por várias questões tenciona o próprio campo da academia? Eu acho que ela é importante de estar no meu fazer... e pensar a nordestinidade, esse elemento que me constitui, é pensar um plano ético na minha pesquisa.

T – Alguma(s) palavra(s) final(is)?

S – Nordeste.

17/10/2016


quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Ferindo o corpo patologia

Cuceta e transexualidade


Das relações prático-teóricas que atravessaram a minha vida nos últimos tempos, algumas escritas corporais me deram outras perspectivas sobre o meu corpo e sobre a minha visão da lógica feminina no corpo trans. Uma delas foi a ideia que tive de tatuar um desenho de uma genitália sobre a região anal e perianal. Para tal processo convidei o Dr. Elton Panamby, e o que decorreu no processo de construção dessa imagem foi que o desenho que criamos não se propunha nem a um realismo nem a uma construção genital que imitasse o humano. Talvez porque a experiência de gênero a qual nos submetíamos estivesse mais relacionada a processos escavatórios e de escutas de sonhos do que propriamente a métodos da medicina de intervenção cirúrgica da transexualização.
Fica claro que até a segunda metade do século XX o conceito de transexual não existia, pois, nessa época, dos estudos efetivados por Richard Von Kraff-Ebing, uma referência se destaca. O caso de um homem nascido na Hungria que, após a adolescência, passa a se sentir e viver como mulher – e, assim, acredita que é – torna-se uma referência, sendo a mais antiga sobre o tema, numa narração autobiográfica. A descrição torna-se quase um roteiro do que serão as futuras narrativas das pessoas chamadas transexuais, sendo referência, porque, pela primeira vez, não há traços de hermafroditismo. Nesse caso, Krafft-Ebing se refere ao estágio de transição para a ilusão de mudança sexual,como um tipo de confusão mental que faz a pessoa crer que está num corpo sexual errado. 
 Nossos corpos também mudam: a invenção das categorias "travesti" e "transexual" no discurso científico. LEITE JR., Jorge. Apresentação: Berenice Bento. São Paulo: Annablume, 2011. 240 p.

A categoria da transexualidade ainda hoje está classificada como Transtorno de Disforia de Gênero, e é com base na marcação patológica que essa categoria ainda existe na prática médica psicológica e psiquiátrica no Brasil. 
Adentrando tal discussão, o nome que eu tinha em mente para a tatuagem era “cuceta”, conceito que se propôs enquanto gesto de desorganização anatômica da construção de feminilidade transexual. A cuceta, para mim, agia justamente sobre a ideia de que existe uma via única de reescrita genital, como propõe a psiquiatria sobre a suposta patologia de transexualismo. O corpo é a todo momento taxonomizado pelo cientificismo, que só autoriza a permanência e o binarismo como escolhas corporais. Se você sai da categoria homem, você é doente e precisa de cirurgias para adquirir outra identidade fixa, a de mulher transexual.
Desenhar algo sobre a zona de disforia construída pelos padrões de corpo feminino, para mim, foi decisivo e abriu portas para tomadas de decisão sobre o meu corpo. Tanto que pouco tempo depois realizei outra intervenção sobre a reagião: uma orquiectomia, que resultou na esterilidade e me fez não produzir mais hormônios (nem testosterona nem estrogênio). O meu corpo que não produz hormônios agora é, ele inteiro, a cuceta e ela mesma já é outra coisa além do nome e da classificação. Penso que não precisamos de nomes e taxonomias para racionalizar a nossa dissidência, e nessa contradição optei por ferir o corpo patologia.

Cuceta, com Elton Panamby (Registro: Helena Assanti)
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quinta-feira, 13 de outubro de 2016

O que é pesquisar o corpo?

Nova redação do Núcleo de Pesquisa Corporal


O bafônico Núcleo de Pesquisa Corporal, projeto do Instituto de Artes da UERJ coordenado por Alexandre Sá, vai retomar o blog como um de seus veículos de discussão, com conteúdo semanal. Como nova redatora do blog, aqui apresentarei em poucas palavras quem sou e ao que me pretendo com esse novo projeto. Eu me chamo Tertuliana Lustosa e aqui será a minha plataforma de escrita onde poderei pensar entrevistas com convidados, além de outros tipos de produção e mídia. Enquanto corpo que também é fronteira, trago aqui minhas angústias e reflexões sobre o que seria uma pesquisa corporal.
Para mim, pensar o corpo é também agir, e agir sobre trajetórias, afetos, carcaças, fissuras e processos singulares. Não tenho, nessa pesquisa, a intenção de submeter a minha experiência a escudos que unifiquem os corpos desviantes, porque do meu ser trans nordestina, sei que certas configurações discursivas e ondas de fetiche identitário alimentam o espetáculo... então a ideia é colocar em jogo meus processos e barracos políticos do sensível, que habitam as suas próprias contradições.
As minhas discussões aqui pretenderão escavar sobre as fraturas políticas do corpo e das suas trajetorias na arte da vida. Sendo assim, espero conseguir movimentar a interseccionalidade de trajetórias travestis+, sapas+, transmasculinas+, negras+, nordestinas+, piauienses+ e pobres+ e eee+. E com muito axé!

Cirurgia de microdermipigmentação cucetal, arte da vida com Sara Elton Panamby (Registro: Helena Assanti)