Rezando ajoelhada no genuflexório, as unhas e o cabelo em destaque
da Mc Linn da Quebrada iniciam blasFÊMEA, “transclipe” em que a experiência transfeminista
ganha proporções do cotidiano periférico, das vozes da rua. A obra audiovisual e musical da
cantora atinge novamente em blasFÊMEA um patamar poético sobre a causa trans de
uma forma não higiênica, onde as vozes pretas, periféricas e putas se
concretizam. Ser trans, travesti, lésbica no país que mais mata travestis e
transexuais do mundo já é pecado e pior ainda é a custódia daquela parte da
população LGBT que não corresponde a uma norma de comportamento e imagem. É
sobre o padrão central, elitista, racista e transfóbico que blasFÊMEA constrói
sua poética de desvio, de corpo, de movimento, de amor e de afetividade.
No início do clipe, ao som clássico do violino e sob a luz
baixa, se faz uma paisagem pós-pornográfica com um ar transcedental. As imagens
flertam com elementos simbólicos da cultura cristã, o que me faz lembrar as performances da artista Viviane Beleboni nas paradas do orgulho LGBT
em São Paulo de 2016 (quando a artista se crucificou) e 2017 principalmente por
elas apontarem a intolerância aos corpos LGBT pregadas por certas vertentes cristãs. Linn ressignifica
e subverte, assim, os signos da cultura colonial com corpos contrahegemônicos –
a equipe do vídeo conta com participações, sobretudo, de pessoas cis/trans
femininas e de LGBTs.
A voz da Linn surge após um relato familiar. Fez-me encher
os olhos d’água e lembrar como a minha família também desrespeita meus
pronomes, desacredita de meus sonhos, me mata, me expulsa de casa, me induz a
possibilidades mais brandas de ser eu para que possa me apresentar melhor à
sociedade. Logo em seguida, o rap vem como tiro. Trava, favela, ruas,
prostituição, “Ela não quer pau, ela quer paz.” O rap da Linn fez dessa vez
cair a primeira lágrima com o sal dos preterimentos, com a secura da nossa sede
afetiva, sim, travestis têm sede afetiva e podem se sentir atraídas sexual e
afetivamente por homens, mulheres, pessoas. Só que a prostituição é muitas
vezes a única porta para a população travesti. E muitas vezes esquecemos que
não é só sobre trabalho, pois mesmo empregadas no mercado formal as pessoas
trans ainda vivem o abandono afetivo, a imposição de uma competitividade entre
mulheres, a culpa por amar. Quem (trans) nunca percebeu a insegurança das
pessoas que estão na sua companhia? No Brasil, infelizmente, ainda não há
socialização para a subversão travesti que não passe pela sua hipersexualização
e pela prostituição. Paz.
O bonde das bixas e das travestis nas ruas cria uma imagem que
aponta para uma coletividade e o rap segue com palavras em pajubá, que por sua
vez agrega uma carga do cotidiano da pista e das comunidades transvestigeneres.
O pajubá trata-se do dialeto utilizado sobretudo por travestis e pelo povo praticante
de religiões afro-brasileiras que mixa a língua portuguesa com numerosas
palavras e expressões provenientes de línguas africanas, como o iorubá.
Ao fim, banho de ervas, axé e a certeza que fica é que Linn
da Quebrada roteirizou, cantou e dirigiu um transclipe dando uma contrapartida babadeira
à midia atual, que trata o tema trans de forma patologizante, infantilizante e
higienizada para os olhos da tradicional família brasileira.
Segue o link para quem puder contribuir com o financiamento
do disco da Linn da Quebrada https://www.kickante.com.br/campanhas/linn-da-quebrada-bixa-pode-fazer-um-pedido-0
por Tertuliana Lustosa