segunda-feira, 24 de abril de 2017

blasFÊMEA: corpo e arte como pecado

Rezando ajoelhada no genuflexório, as unhas e o cabelo em destaque da Mc Linn da Quebrada iniciam blasFÊMEA, “transclipe” em que a experiência transfeminista ganha proporções do cotidiano periférico, das vozes da rua. A obra audiovisual e musical da cantora atinge novamente em blasFÊMEA um patamar poético sobre a causa trans de uma forma não higiênica, onde as vozes pretas, periféricas e putas se concretizam. Ser trans, travesti, lésbica no país que mais mata travestis e transexuais do mundo já é pecado e pior ainda é a custódia daquela parte da população LGBT que não corresponde a uma norma de comportamento e imagem. É sobre o padrão central, elitista, racista e transfóbico que blasFÊMEA constrói sua poética de desvio, de corpo, de movimento, de amor e de afetividade.

No início do clipe, ao som clássico do violino e sob a luz baixa, se faz uma paisagem pós-pornográfica com um ar transcedental. As imagens flertam com elementos simbólicos da cultura cristã, o que me faz lembrar as performances da artista Viviane Beleboni nas paradas do orgulho LGBT em São Paulo de 2016 (quando a artista se crucificou) e 2017 principalmente por elas apontarem a intolerância aos corpos LGBT pregadas por certas vertentes cristãs. Linn ressignifica e subverte, assim, os signos da cultura colonial com corpos contrahegemônicos – a equipe do vídeo conta com participações, sobretudo, de pessoas cis/trans femininas e de LGBTs.

A voz da Linn surge após um relato familiar. Fez-me encher os olhos d’água e lembrar como a minha família também desrespeita meus pronomes, desacredita de meus sonhos, me mata, me expulsa de casa, me induz a possibilidades mais brandas de ser eu para que possa me apresentar melhor à sociedade. Logo em seguida, o rap vem como tiro. Trava, favela, ruas, prostituição, “Ela não quer pau, ela quer paz.” O rap da Linn fez dessa vez cair a primeira lágrima com o sal dos preterimentos, com a secura da nossa sede afetiva, sim, travestis têm sede afetiva e podem se sentir atraídas sexual e afetivamente por homens, mulheres, pessoas. Só que a prostituição é muitas vezes a única porta para a população travesti. E muitas vezes esquecemos que não é só sobre trabalho, pois mesmo empregadas no mercado formal as pessoas trans ainda vivem o abandono afetivo, a imposição de uma competitividade entre mulheres, a culpa por amar. Quem (trans) nunca percebeu a insegurança das pessoas que estão na sua companhia? No Brasil, infelizmente, ainda não há socialização para a subversão travesti que não passe pela sua hipersexualização e pela prostituição. Paz.

O bonde das bixas e das travestis nas ruas cria uma imagem que aponta para uma coletividade e o rap segue com palavras em pajubá, que por sua vez agrega uma carga do cotidiano da pista e das comunidades transvestigeneres. O pajubá trata-se do dialeto utilizado sobretudo por travestis e pelo povo praticante de religiões afro-brasileiras que mixa a língua portuguesa com numerosas palavras e expressões provenientes de línguas africanas, como o iorubá.

Ao fim, banho de ervas, axé e a certeza que fica é que Linn da Quebrada roteirizou, cantou e dirigiu um transclipe dando uma contrapartida babadeira à midia atual, que trata o tema trans de forma patologizante, infantilizante e higienizada para os olhos da tradicional família brasileira.

Segue o link para quem puder contribuir com o financiamento do disco da Linn da Quebrada  https://www.kickante.com.br/campanhas/linn-da-quebrada-bixa-pode-fazer-um-pedido-0

por Tertuliana Lustosa